10 contos por mil
ideias reais.
Os óculos que não são de Drummond, nem de cobre.
-Mas como você começa¿
-Como eu começo¿ É fácil. Olha só. Tá vendo aquele de óculos
com aro de ouro¿ Sentando do outro lado do balcão lendo aquele jornal¿
-Que que tem ¿
- É Otávio, aquele óculos, redondo com aros de ouro, estilo
John Lennon, ele comprou em um antiquário em Parati, na viagem que ele fez com
a noiva dele. Foi em 2003, aquele óculos era de 1955 e tinha pertencido a
Francisco, funcionário público que tinha como hobby escrever. Escrevia no final
dos livros de receita da mulher, deixava recados em forma de poemas na
geladeira, escrevia cartas de amor, cartas para amigos, cartas para
analfabetos. Não escrevia para os jornais pois seus textos eram vistos como
comunistas, e nem tinha interesse neles, pelos jornais e pelos comunistas.
Seu sonho era
escrever um livro, mas nunca tivera tempo e uma história completa para
escrevê-lo. Não teve filhos por causa do problema que a mulher dele tinha no
útero. Eles foram envelhecendo juntos, ele escrevia com mais freqüência, e aos
poucos foi perdendo a visão porque não tratava dela direito, e nunca mudava os
graus do óculos.
Sempre depois do
almoço ele chama a sua mulher.
-Vicentina!
Eles sentavam na mesa
da sala de jantar, com a porta aberta pra rua.
-Onde eu tinha parado¿
-“...E senhor Dirceu, destrinchou o peixe, ofereceu para o
menino loiro e disse que aquilo era raro.”
E assim passavam a
tarde toda, Francisco ditando devagarzinho e sua esposa escrevendo com as mãos
tremulas de velhice.
Até que um dia aos 73
anos e seis horas da tarde de um sábado, o coração parou de bater. Seu
Francisco deixou o caderno cair no chão. E sua esposa chorou muito.
-E o livro¿- perguntou o jornalista gordo.
-Que que tem o livro¿
-Ele conseguiu publicar¿
-Não. Ele nem se quer terminou. E sabe, os
óculos...continuam com mesmo grau que tinha daquela época, é o mesmo tanto que
o Otávio usa.
- Nossa , que história.
-É, e Otávio é editor. Mas sua editora só é conhecida por
livros de receita.
O homem de óculos com
aro de ouro levantou do balcão, passou por nós e quando lançou nos um olhar eu
disse com um aceno de mão quase imperceptível.
-Otáviio.- fiz bem baixinho só para o reporte ouvir.
O homem dos óculos
acenou com a cabeça, como se acena para um desconhecido que parece que te
conhece.
-Coitado é virgem.
-Quem ¿
-Otávio, ué.
-Mas e a noiva¿
-Ah! A noiva. Ficou com a tia.
-Pra tia¿
-É, com a tia dele.
-Que história!
-É...que história.